sábado, 31 de março de 2012

Presente


Essa Pequena 

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra 
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora 
Temo que não dure muito a nossa novela, mas 
Eu sou tão feliz com ela 

Meu dia voa e ela não acorda 
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida 
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas 
Não canso de contemplá-la 

Feito avarento, conto os meus minutos 
Cada segundo que se esvai 
Cuidando dela, que anda noutro mundo 
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai 

Às vezes ela pinta a boca e sai 
Fique à vontade, eu digo, take your time 
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas 
O blues já valeu a pena 


sábado, 24 de março de 2012

amor

MULHER
Ele tá chegando.

HOMEM
Quando?

MULHER
Amanhã. Ele tá chegando amanhã.

HOMEM
A essa hora já vai estar aqui?

MULHER
Amanhã. Vai estar aqui a essa hora.

HOMEM
E você?

MULHER
Eu?

HOMEM
É. Você.

MULHER
Precisa estar tudo pronto quando ele chegar.

HOMEM
Precisa. E você?

MULHER
Eu?

HOMEM
É. Você.

MULHER
Eu estou aprontando tudo.

HOMEM
Já foi ao super mercado?

MULHER
Já tem tudo que ele gosta na geladeira.

HOMEM
Já foi à feira?

MULHER
Já tem tudo que ele gosta na geladeira. Já tem todas as frutas que ele gosta.

HOMEM
E você?

MULHER
Já temperei a carne que ele gosta. Assim pega mais o gosto. Amanhã vai estar ótima.

HOMEM
Ele chega quando?

MULHER
Amanhã. A essa hora mesmo já vai estar aqui.

HOMEM
E você?

MULHER
Vou fazer a tapioca que ele gosta. Já tem tudo aí.

HOMEM
Queijo coalho?

MULHER
Vai estar tudo pronto quando ele chegar. A mesa pronta.

HOMEM
E você?

MULHER
Eu até comprei um jogo novo de chá. Umas xicrinhas lindas!

HOMEM
Ele vem pro café?

MULHER
A essa hora mesmo, amanhã, ele já vai estar aqui.

HOMEM
E você?

MULHER
Vou levantar mais cedo, pra buscar o jornal. Vou deixar o jornal bem aqui.

HOMEM
Ele gosta de ler o jornal durante o café?

MULHER
Ele gosta do rádio ligado enquanto lê o jornal. Naquela rádio, como é mesmo o número daquela rádio?

HOMEM
Música clássica? Ele gosta de música clássica? E você?

MULHER
Vou buscar o rádio que emprestei pra Roseli.

HOMEM
Você, amanhã...

MULHER
Vou buscar e procuro a rádio ainda hoje e amanhã já vai estar tudo certo quando ele chegar.

HOMEM
Amanhã, você...

MULHER
Amanhã, vou vestir aquele vestido azul. Aquele que tem um decote em v.

HOMEM
Você...

MULHER
Amanhã, quando ele chegar, vai estar tudo pronto. E eu vou estar no meu vestido azul, preparando tapiocas, o rádio na rádio que ele gosta, o jornal na mesa, o jogo novo de chá, com aquelas xicrinhas lindas.

HOMEM
Amanhã, eu não venho.

MULHER
Amanhã, eu vou levantar um pouco mais cedo, pra dar tempo de tomar um banho antes dele chegar, buscar o jornal antes dele chegar, buscar umas flores antes dele chegar. Será que ele vai me trazer flores?

HOMEM
Ele não vai trazer flores.

MULHER
Posso começar a cozinhar a carne logo de manhã, assim o almoço sai ao meio dia, como ele gosta.

HOMEM
Amanhã, eu não venho.

MULHER
Você pode vir tomar o lanche da tarde com a gente. Pode passar na padaria e trazer aqueles pãezinhos com aquela farofa doce por cima.

HOMEM
Amanhã, eu não venho.

MULHER
Amanhã, a essa hora mesmo ele vai estar tomando café e comendo as tapiocas com o queijo coalho. Ei, aonde você vai?

HOMEM
Amanhã, eu não venho.

MULHER
Tudo bem. Amanhã ele vai chegar e eu vou estar naquele vestido azul que ele gosta.

sexta-feira, 23 de março de 2012

pelos corredores

Tenho saudades das conversas em que se podia falar de tudo, sem aquele constrangimento estranho de estar sendo afiada demais, fofoqueira demais, petulante demais. Sem nada. Sem esse incômodo de ter que medir palavras. Não media palavras, mesmo que as vezes te machucasse; você não media palavras e muitas vezes me fazia pensar. E agora, nesse movimento egoísta desconfiado, nunca me sinto a vontade pra dizer qualquer coisa sobre quase tudo. Como fazíamos antes. Nem com você, nem com os outros. Nem eles comigo. Nem você comigo. Cresci para aprender a colocar minhas idéias, mas perdi a delícia de poder ser afiada demais, fofoqueira demais, petulante demais. E crescer não devia ter nada a ver com confiança e cumplicidade. 

domingo, 11 de março de 2012

Surpresas da madrugada

E aí você se depara com um link que te leva pra todos os lugares que você queria acessar.
http://www.parkeharrison.com/gray-dawn

Por essas e outras que algumas coisas se chamam arte e outras, qualquer coisa. E qualquer coisa não atinge o que essas imagens atingiram aqui.

sábado, 3 de março de 2012

Um texto assim


Dois homens trabalham cortando carnes no balcão de um açougue.

NAD
Ei, Schiller, como andam suas botas?

SCHILLER
Nada bem, Nad. Não secam nem depois de um dia de sol.

NAD
Você precisa de botas novas, Schiller.

SCHILLER
Eu sei, Nad, mas meus trocados mal dão pro conhaque.

NAD
Posso te vender umas.

SCHILLER
Você tem botas aí, Nad? Por que não me disse antes?

NAD
Não tenho. Mas posso ter.

SCHILLER
E vai roubá-las de quem?

NAD
Não faço dessas coisas, Schiller. Tenho outras maneiras de ganhar a vida.

SCHILLER
Não posso pagar.

NAD
Ainda não dei o preço.

SCHILLER
Já disse que meus trocados mal dão pro conhaque.

NAD
Você pode me pagar a prazo.

SCHILLER
O que é isso, Nad, seu filho da puta, virou agiota?

NAD
Ei, Schiller, cala essa boca. Vai querer ou não as botas?

SCHILLER
Olha, Nad, acho melhor não me meter com caras como você. Meus trocados não dão pra nada e não quero 
morrer por um par de botas.

NAD
Tem medo de morrer, Schiller?

SCHILLER
Não. Só está cedo.

NAD
Sabe, Schiller, tem caras por aí que não acham que está cedo pra você morrer.

SCHILLER
Nad, eu devia moer sua cara.

NAD
(virando-se de costas para Schiller)
Você não é de nada Schiller, nunca soube de uma briga que você ganhou. Esses caras vão acabar com você em um minuto.

Schiller pula sobre Nad. Os dois rolam sobre o balcão. Schiller força a mão de Nad contra o moedor de carne até ele perder as pontas dos dedos.



- Mano, eu queria escrever um filme assim.
- Você não escreve nem bilhetinho pra mulher.
- Coisa de homem, sabe?
- Você nem me parece um homem.
- Vai se fuder, Devid.
- Você é um muleque.
- E você um pela saco.
- Desliga essa porra e volta pro trabalho.
- A dona Silvana disse que precisa ter filme ligado o dia todo.
- Mas é filme novo, coisa que vai fazer alguém querer assistir.
- E o que tem de errado com esse filme?
- É ridículo, velho e decadente.
- Você não entende nada de filmes.
- E você, seu paspalho, entende o quê? Balconista de lanchonete!
- Olha aqui seu cretino, sou tão empregado aqui quanto você. Mais uma dessas e eu vou moer sua cara.
(entra uma cliente. Os dois param de discutir).

quinta-feira, 1 de março de 2012

3,333...

(Um homem fuma seu cigarro. Seus olhos estão vendados).

Dois e duzentos com trezentos e cinqüenta. Dois quinhentos e cinqüenta com sessenta e cinco. Dois seiscentos e quinze pra três. Trezentos e oitenta e cinco por trinta. Doze vírgula oitenta e três três três três menos nove e cinqüenta. O PF é nove e cinqüenta. Quase cinco salários mínimos e três e trinta e três pro jantar.  A conta.
A conta. Corrente. Poupança. Investimento. Renda fixa. CDB. Previdência. Seguro.
Despertador às sete da manhã. Acorda. A corda. A meta. Os juros. Cheque especial. Débito automático. Aplicação automática. Automático. De fábrica. Air bag, direção, trava elétrica. Botões. Sistemas. Não há sistema.
Um carro. Um cargo. Há crédito. É tarde.
O mercado, a bolsa, a meta. São quinze contas correntes no mês. São três e trinta e três pro jantar. 
O seguro. A previdência. A providência. 
(tira a venda dos olhos)
Às sete da manhã acorda.
(Homem sobe em uma cadeira)
O PF é nove e cinqüenta.
(Faz um laço com uma corda)
Há crédito.
(Passa a corda ao redor do pescoço. Crianças sorriem à beira de uma piscina ao seu lado. O galã na novela acena logo atrás dele).
Há meta.
(Rasga a camisa e pula. Em seu peito: E O BANCO QUEM É QUE BANCA?)



“Há duas maneiras de viver a vida. 
A primeira é vivê-la como se milagres não existissem. 
A segunda é vivê-la como se tudo fosse um milagre”
(frase de calendário)