terça-feira, 30 de outubro de 2012

Pré-eleição


Vai e vem de urnas. A vida lá fora é tão mais interessante. Eu quero escrever um sonho. Me escrever dentro da pele do coelho. Eu nos olhos do Bartolomeu, ouvindo Morrison enquanto bebemos um vinho, fumamos cigarros e empesteamos o ambiente com incenso de benjoin para dissimular o cheiro da erva. Falar frases prontas e repetir versos antigos de poetas mortos, tão clichê quanto essa cena, essa sala, esse vinho nacional e esse vinil rodando só pra ouvirmos o chiado da agulha. Tão cafona quanto as roupas que usamos pra nos sentirmos mais atraentes. Tão patético quanto escrever em blog. A vida lá fora é tão mais interessante. E eu querendo escrever de dentro, de dentro dos olhos do Bartolomeu. Fugindo dos perigos da rua. Camuflando meu medo de polícia. Eu querendo escrever sem pensar, sem ler o que acabei de digitar. Exercício do português. Não sai.
É tudo inventado. Enquanto meu cachorro dorme sob meus pés.
Então vamos tentar novamente.
Eu tenho desistido de entender. Não há entendimento que dê conta. E as relações continuam nesse pé. Nesses sorrisos que se desfazem no ar quando viramos de costas.
Eu não me lembro.
Eu querendo que a música me embriague e que as horas passem bem, bem do jeito que costumam me agradar. Eu querendo de volta a madrugada. O silêncio do escuro no canto do quartinho vazio. Qualquer movimento fazia tremer. E as letras saiam quase que escorrendo por entre os dedos.
Agora eu sei do que se trata.
E não sei se sei fazer isso assim mais.
Strange days. Strange people.
O cheiro do café, o gosto da erva na boca.
Eu quero me.
De volta.
De um jeito que talvez nunca fui.
Eu sou o coelhão da loja de doces, te vendo passar pela calçada. Te vendo me olhar e sorrir. Te vendo voltar pra me buscar. Te vendo chegar com muitos amigos. Te vendo me jogar no fundo de uma caminhonete. Eu sou o coelhão da loja de doces que te vi apanhar na cara. Sou o coelhão que te viu apanhar na cara pra me devolver de onde me tirou. Eu te vi de dentro.
E o mundo te viu das câmeras de segurança que vigiam todas as ruas. Todos os passos. Até que digamos adeus.
Eu queria escrever um texto que viesse como uma música, como um blues tremendo de baixo pra cima. Segurando a frequência, segurando o ritmo que descarrega. Até a música acabar.
Eu de dentro dos olhos do Bartolomeu. Me negando a cheirar a bunda dos cãezinhos de madame que cruzam comigo no elevador. Correndo louco em direção ao sol. E deixar que essa luz me envolva. Em espiral. Um carrossel. As cenas que não se completam. Não é o início e não vai até o fim. E sempre volta pro mesmo lugar. E nunca está do mesmo jeito.
Eu sou quem te diz o que acontece. Mesmo sem cigarros, sem incensos, sem ervas e sem roupas. Só o Morrison continua aqui. Rodando sem o som da agulha.
Enquanto um doutor sei lá quem, muito entendido do cenário político nacional, dá pitacos sobre as intensões de votos que serão computados amanhã.  Empate técnico entre um ex-ministro do PT, um ex-ministro do PSDB e um representante da moral e dos bons costumes cristãos evangélicos que assolam o país desde a última depressão.
Que cidade é essa?!
Se as eleições cariocas fossem na capital paulista, o filho do Maia seria o campeão.
Enquanto isso, eu sou a mosca, que não pousa em sopa nenhuma.
Eu sou a mosca rondando na madrugada imunda, das cagadas que se fazem quando eleger seu candidato é precedente pra qualquer ato estúpido antiético.
Eu sou a mosca rondando a cabeça dos bêbados recolhidos da praça na véspera das eleições. Afinal de contas, bêbados também votam. E eu fiquei com os restos do que deixaram pra trás.
Mas ainda é meu esse teclado. E o controle remoto da TV. Troco do árabe reacionário pra banda de rock. Hoje é dia de rock, bebê.
Eu de dentro do coelhão, dos olhos do Bartolomeu, da mosca rondando em círculos.
Eu me procurando aí.
Sem erva, sem vinho, sem nada.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O corpo sem desejo


Um filete de sangue escorre do meu ouvido direito.
Ele não vai parar
Minha cabeça pulsa num inchaço lancinante.
Ele não vai parar
Meus joelhos e pulsos parecem ceder, despedaçando meu corpo disforme.
Ele não vai parar
A figura esquálida que vejo na tela, através da fresta em que se abrem meus olhos, um dia foi a imagem de mim.
O meu algoz sorri.
Esse corpo que pende não sou mais eu.
O corpo sem desejo é o corpo torturado.
Descolado da alma.
Inerte.

(Texto de estímulo para o II Experimento G2- Módulo Azul - SPET - 2012)