terça-feira, 13 de julho de 2010

Poltrona 19

Eu tava lá, na casa da mulher, aí a mulher começou a me perturbar. Reclamando de tudo, falando da minha vida. Eu falei: "Quer saber? Tô indo embora, malandro”. Porque ninguém tem que viver minha vida não. A vida é minha, eu vivo a minha vida, não vivo a vida de ninguém. Eu tenho o meu dinheiro, que é o banco que me paga. Não devo dinheiro pra ninguém. Você acha o quê? Que um cabra com sessenta e cinco anos não tem vida mais? Porque eu te digo uma coisa: eu tô vivo ainda e enquanto eu tiver vivo eu que vivo minha vida. Ninguém vai dizer pra mim o que eu tenho que fazer não. Mulher maluca. Aí eu disse pra ela: “Oh, quer saber? Eu vou lá pra Juiz de Fora. Vou lá beber no boteco do meu camarada Nonô, que eu chego lá e digo 'Ô Nonô, me vê uma daquela'. E ele diz: “Cuidado que essa derruba!” Mas então é essa mesma que eu quero, porque se fosse pra ficar em pé, eu me amarrava no poste. Eu bebo é pra cair, malandro. Veio a mulher dizer pra mim que só me vê tonto por aí. Eu vou te dizer uma coisa então: eu bebo mermo, que quem paga minhas cachaças sou eu. E eu vivo tonto mermo, então se cê tá me vendo, é porque tá me vendo tonto, morô? E a tal da mulher me encheu tanto a paciência, que eu disse pra ela: eu vô é pra Juiz de Fora beber com meu amigo Nonô e depois de lá eu vou pra Rio das Ostras pra vê meu cunhado e tomar umas com ele lá. Que eu não tô morto não, malandragem. Eu tenho meu dinheiro, minha aposentadoria, que é o banco que me paga, todo dia três. Todo dia três eu chego lá no banco: “Me dá meu dinheiro aí, malandro!” e a mulher lá me fala: "Seu Elias, o senhor quer fazer uma poupança?” Poupança que nada, minha filha. Eu tenho sessenta e cinco anos, num tenho filho, num tenho mulher, vou deixar dinheiro pra quem? E além do mais eu não gosto dessa história de Seu Elias, não. Meu nome é Lilico. Lilico Viola. É assim que a malandragem me chama, da época das serenatas. Toquei muito embaixo da janela das moças, tocava pela rua, viajava essas cidadezinha aí tudo. Lilico da Viola. Eu gosto é de viajar. Cê tá achando o quê, malandro? Que um cabra de sessenta e cinco anos não tem mais nada pra viver não? Eu gosto é disso aqui. De viajar, de conhecer gente, de olhar essas paisagem, olhar pros morros, pro céu. Olha que coisa mais linda esse caminho! Olha lá aquelas nuvens lá na frente, vai dizer que não dá vontade de mergulhar no meio delas? Ô malandro, eu tenho sessenta e cinco anos, mas não tô morto não. Quero viver minha vida. A gente nunca sabe a hora que vai morrer não. Meu irmão, oh, quarenta anos, filho, mulher e o escambau, caiu durinho na frente da esposa. Deu um treco no coração lá. Cê não sabe a hora que vai morrer não, malandro. Na hora que ela chega cê vai. O camarada lá da rua, foi fazer graça pra menina, ligar a luz da casa dela. Morreu. Ficou lá pendurado nos fio tudo, grudadinho com a mão no fio. Você sabe o que vai acontecer daqui há dois minutos? E se esse ônibus vira e morre todo mundo? E se só sobra o Lilico? Cê não sabe, malandro, então se não sabe tem que viver hoje. Aproveitar essa paisagem, respirar fundo, sabe como é? Cê tá achando o que, malandro? Que um homem de sessenta e cinco anos não tem mais idéia, não pensa mais. Eu até música faço. Poema, versinho. E vô te dizer uma coisa, eu gosto mesmo é de viajar, conhecer as pessoas. Oh, quando eu to lá na minha casa, eu não fico vendo televisão em casa não. Eu vô pro bar tomar umas, conheço uns camaradas, umas mulher. Ou então eu fico lendo. Eu gosto muito de lê. Leio muito a Bíblia, sabe? Acho um livro muito bonito, muito bem escrito. Mas te dizer que tem umas coisas lá que não são certas não. Cê sabe que Jesus caiu na porrrada com aqueles cabras lá que ficavam irritando ele. Mas aí ele pediu pra tirar essa parte da história pra ficar mais bonito, né? Fora que tem umas coisas que uma hora diz e noutra hora disdiz. Tem lá na Bíblia, um dos mandamentos do senhor: não matarás. Não é isso? Quer dizer, cê não vai matar ninguém nessa vida pra ser um homem de bem, pra ir pro céu. Aí você vai lê lá na frente e descobre o rei que mandou matar todo mundo porque o povo não acreditava em Deus. E tem lá aquela história ainda, do homem que passou no meio das águas. Depois que o cabra passou, os inimigos vinham tudo atrás dele e o que aconteceu? Fechou as águas tudo em cima dos camaradas. Aí eu te pergunto, malandro: num matou? Matou foi um monte de uma vez só. Aí tem uma história: Vinha Jesus caminhando com Pedro e chegaram na beira do mar. Jesus olhou um navio que vinha lá longe e disse: "Pedro, naquele navio vem um homem que quer me matar". E Pedro perguntou pra ele: "O que cê vai fazer, Jesus?". “Vou afundar o navio”. Aí Pedro ficou assustado. “Mas Jesus, só um homem lá quer te matar e tem um monte de gente lá dentro do navio!" Aí Jesus respondeu pra ele: Os justos pagam pelos pecadores. O Pedro não ficou muito satisfeito com a resposta não, aí Jesus pediu pra ele: "Ô Pedro, trás pra mim aquela casa de abelha que tá naquela árvore lá". E o Pedro foi, né? Que ele era muito obediente. Pegou a casa das abelhas e enrolou assim nas vestes dele. No meio do caminho, uma safada duma abelha picou o Pedro bem na bunda. Ele ficou desesperado, saiu jogando tudo no chão, pisando nas abelhas toda. Aí Jesus perguntou pra ele: "Quantas abelhas te picaram?" E Pedro respondeu: "Uma". Os justos pagam pelos pecadores. É malandro, eu leio a bíblia mas não fico bitolado não. Eu interpreto as coisas que tão escritas lá. Sabe que uma vez fui tirar uma dúvida com um padre. Porque o negócio é o seguinte, tá lá no Gênesis: Deus criou Adão, achou que ele tava muito sozinho, tirou uma costela dele e fez a Eva. Aí teve aquela estória toda da cobra, Adão e Eva tiveram dois filhos: Caim e Abel. Aí o Abel era aquele cara certinho, sabe? Sabe aquele malandro que faz tudo direitinho? E Deus amava ele. O Caim não. O Caim era meio doido. Assim, que nem o Lilico. Meio doido não, doido inteiro, que já que é pra sê doido é doido de tudo. Aí o Caim ficou foi com uma raiva, que esses cabras certinho demais deixam é quem é meio doido uma fera. Aí o Caim não agüentou, foi lá e matou o Abel. Aí, bateu aquela dor, né? “Pô, matei meu irmão”. Aí então que o cabra ficou mais doido ainda e saiu andando por aí. Andou, andou, encontrou uma mulher lá e casou com ela. Aí eu te pergunto: Que porra de mulher é essa? Não era só Adão, Eva, Caim e Abel? De onde saiu essa mulher? Aí sabe o que o padre me disse? “Mistério, meu filho. Mistérios da Bíblia”. É um livro muito bonito, a Bíblia, que eu leio todo dia, mas tem umas coisa lá que não tá muito certo não. Sabe, malandro, eu acho que eu vou dormir um pouco. Mas ó, eu tento dormir e não consigo. Que eu gosto mermo é de aproveitar esse encontro aqui pra uma conversa. Vê só uma coisa: cê veio aqui, comprou passagem, eu também, e a gente nunca tinha se visto antes, malandro. E se bobear nem vai se ver nunca mais. Então ta aí. Já que é pra viajar assim do lado de desconhecido, passa a conhecer, né? Que se tu quiser ir comigo depois tomar uma pinga lá no Nonô, cê pode ir.

sábado, 10 de julho de 2010

Por tão pouco

Ainda não tinha pensado em você com cuidado. Depois da notícia, tentei me lembrar das últimas vezes que nos esbarramos por aqui, das palavras que trocamos, do abraço apertado, do contentamento de termos descoberto uma amiga em comum. Tento sempre fugir desses clichês, mas eles me batem na cara quando vejo sua foto no orkut me lembrando que semana que vem seria seu aniversário. Não quero ficar triste, quero lembrar de você com a calma que você falava sempre, com a tranquilidade e o olhar a parte de tanta coisa. E é bom saber que deu tempo para tanta coisa, tantos lugares, tantas pessoas. Acho que não fico triste porque me lembro que quando te vi, você estava muito feliz e fiquei feliz por você. "Lembrar é uma forma de sempre manter vivo". Vou lembrar de você sempre. Vou sempre me lembrar de ser feliz hoje. Porque a morte não olha a certidão de nascimento antes de te beijar.