quinta-feira, 25 de julho de 2013

Um trecho para Pê















Sentiu de novo aquele cheiro. O vento frio cortando o rosto. A luz invadia os olhos e cegavam. Ela enxergava melhor na penumbra. Ou era assim que costumava ser. Como naqueles dias em que recebia a luminosidade aos poucos. E aos poucos observava a luz clareando os ambientes.  O dia nasce devagar. A luz e a escuridão passam horas em contato. E enquanto uma recua exausta, a outra espalha-se na imensidão. Como naqueles dias. Dias em que ela apurava o olhar. Dias em que uma garota, com cara de mais garota ainda, invadia os redutos masculinos na escuridão, iluminada por placas de neon, e se sentava a mesa com eles. Como um deles. A fragilidade exposta nos olhos e a segurança mascarada nos ombros. Nos dias em que ela habitava o mundo dos mortos. “O inferno é isso aqui”, bradou uma vez, irritada com um papo chato de crente em mesa de botequim. Ali era sempre o último bar aberto no que restava da madrugada, que podia acabar ao meio dia, comendo pastel, tomando cerveja e conversando com as prostitutas na feira no centro da cidade.

Ela sentiu de novo aquele cheiro. O vento frio cortando o rosto. E as caras amassadas de dormir, misturadas às aparências cansadas de quem acorda quando ainda é noite, já circulavam pelas calçadas. Não longe dali, uma criança dormia um sono profundo, envolta em ursinhos de pelúcia. Aquele cheiro e aqueles sons. O mundo dos homens sendo desbravado pelo rosto juvenil de menina. O peito estufado. A segurança nos ombros. Bebia uma cerveja encostada no balcão. Falava qualquer coisa com o garçom. Ria. Ouvia. Cheirava. Qualquer coisa dessas que a gente vê na noite todos os dias. Qualquer coisa sobre bêbados brigando na calçada, crianças cheirando cola e pedindo esmolas, transações sexuais discutidas em mesa de bar. Qualquer coisa sobre o sentido da vida ou as teorias sobre vida após a morte e a existência de demônios rondando por aí. “Os demônios são pessoas como essas, que não percebem que morreram e continuam sugando os outros em busca de álcool, drogas e sexo” - arrematava em tom de ironia com os parceiros mais frequentes. E eles eram sempre os funcionários do bar. Do gerente ao segurança.

Ela sentiu de novo aquele cheiro quando, naquele dia, ele a puxou com força pra dentro e a mandou ficar ali. Os movimentos anteriores foram uma gargalhada forçada de uma travesti, um nordestino comprando mais uma ficha para cantar sertanejo no karaokê, alguém discutindo a conta no balcão e um motoqueiro com o capacete levantado, arrancando com a moto por cima da calçada. Quando acreditou que ela estivesse segura, ele se voltou novamente para fora do bar e ela pode ver a arma presa à cintura. “Ele foi gogoboy. Dançava na boate de vez em quando” – e ela sabia que era verdade. Tanto quanto sabia que aquele barulho não era de cano de descarga. Estufou o peito. Ele voltou e a mandou ir embora. A madrugada acabou mais cedo aquele dia. E pra ela não tinha durado nem duas horas.