terça-feira, 25 de outubro de 2011

Nascer

"Dadinha, sentada num tamborete com as pernas escarrapachadas e sacudindo o corpo de riso, disse que deviam ter dado miolo de boto a ele para ter ficado maluco assim, já velho e ainda sem nenhum juízo. Mas ele não ligou, deu dois saltos e caiu com um joelho no chão diante da menina, que estava quieta e enrolada em cima de uma esteira.
- Naê-ê! - gritou. - Rainhazinha de Aiocá! E o sinal!
- E dizendo bobagem - reclamou Dadinha.
Mas ele de novo não ligou e, como se houvesse muito mais música ali do que o som de seus calcanhares batendo no chão, das palmas que repenicavam em mil compassos e do que lhe saía da boca em estalidos de língua e beiços e melodias de garganta assemelhadas a solos graves de flauta, esticou os músculos, agora retinindo de tensão e suor, e dançou. Muitos ali dançavam e eram admirados quando, nas festas em que podiam fazer música, reviravam os olhos e saltavam loucamente pelo barro batido, flutuavam no ar, faziam com que seus corpos fossem muitas coisas ao mesmo tempo, traziam fogo aos corações dos outros e, nessas horas, eram divindades. Mas nunca se viu tal dança como a de Turíbio Cafubá celebrando sua filha, pois ele ficou transparente e logo muito preto e logo estava em toda parte, às vezes parando e vibrando como uma asa de cigarra, às vezes se dissolvendo em tantas formas que as pessoas não sabiam em que acreditar, e então todos os ritmos que brotavam em sua figura eram ritmos de alguma coisa acontecendo dentro de cada um, sangue pulsando, dedo se abrindo, fôlegos tomados, tudo o que pode ocorrer no corpo, tudo ao que o espírito se entrega. (...) dançou em homenagem à filha como os guerreiros mais orgulhosos de que se tinha notícia, esse orgulho espelhado em todo gesto, toda martelada de pé, todo olhar levantado, todo ombro erguido, todo passo à frente, todo agitar de braços e mãos, tudo com que se pode exibir altivez." 

João Ubaldo Ribeiro - Viva o Povo Brasileiro

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