sexta-feira, 1 de março de 2013

Não vim ao mundo pra ser passiva


As narrativas faliram, porque não há como narrar o ponto em que chegamos. Foi mais ou menos isso que pensou o Benjamin quando o mundo se viu estupefato com as barbaridades cometidas durante a Segunda Guerra. Hoje, é fichinha. Holocausto é fichinha. Bomba atômica é fichinha. Nos embrutecemos. Enganou-se aquele que acreditava que o auge da barbárie traria uma nova consciência, um novo respeito, uma nova ideia de amor ao próximo. Enganou-se quem acreditou na redenção humana pelas próprias mãos. Pioramos. E vamos piorando a cada dia. Embrutecidos, anestesiados.  Tá fácil assistir à violência nossa de cada dia. Não precisa ir ao cinema, não precisa assistir telejornais. Ela está por todos os lados, nos olhares, nas reprimendas públicas das atitudes alheias. E é nesse contexto que renasce um movimento cristão, reúne adeptos de todas as classes, prega as palavras bíblicas em troca de uns bons trocados isentos de imposto de renda. E vai, aos pouquinhos, de pregação em pregação, alastrando nos peitos doídos e passivos dos desesperados, os sentimentos de ódio, de intolerância, de desrespeito ao outro. Outro nesse sentido mais preciso da palavra: aquele que não sou eu, aquele que em nada se assemelha comigo, aquele que faz suas escolhas pautadas em outros valores que não os disseminados na minha igreja. Minha igreja. É como os novos cristãos evangélicos falam. Os católicos creditam À Igreja, assim, com letras maiúsculas, a única salvação possível. Os evangélicos tem cada um a sua. E vão de casa em casa, na padaria, na esquina, na fila do banco, no meio da rua, no congresso nacional, sem pudor ou respeito às opiniões alheias, convocando cada vez mais adeptos a se unirem nessa causa divina. Como se a quantidade de pessoas encaminhadas à igreja fosse alargando as portas do céu pra ele ou ela. Vai garantindo seu espacinho ao lado de Deus, depois do dia que a barbárie o pegar de jeito, ou quando a morte, naturalmente, se alastrar em seu sangue, em seu corpo e deixar vazia de alma essa carcaça que carregamos. Todos iguais. Por dentro, somos todos iguais, com coração, pulmões, estômago e intestinos funcionando de forma igual (respeitadas as devidas singularidades. Singularidades que a natureza propõe, experimenta, como forma de povoar esse planeta com uma diversidade enorme de seres vivos, diferentes em cor, tamanho, tipo de alimentação e etc). Como nos canta Rita Lee, muito sabiamente, um dia depois, tudo vira bosta.

Não são possíveis mais narrativas porque a experiência humana às transborda. Uma narrativa não dá conta de toda barbárie que somos capazes de produzir. Acho que foi isso que o Benjamin quis dizer. E o nosso cotidiano anda tão saturado de eventos bárbaros, que nos anestesia. Mas eu não vim no mundo pra ser passiva, pensei cá com meus botões. E resolvi que escrevendo conseguiria transpor pro papel, pro ator, pro público, essa angústia que me invade todos os dias, todos os dias, quando no meio da rua ou dentro do ônibus ou na fila do metrô, quando todos os dias eu me deparo com a intolerância estampada na cara das pessoas, na fala das pessoas, nos gestos das pessoas. Mas não. O papel nunca é suficiente. O que eu escrevo nunca é suficiente pra expurgar a dor de ver (inclusive em pessoas que eu amo) esse ódio ao outro. Esse não suportar que o outro seja como ele quer ser, como ele escolhe ser, com seus defeitos e qualidades. E aí, me vem essa notícia sensacional: um senhor, pastor evangélico, declaradamente homofóbico e racista, irá assumir a presidência da comissão de direitos humanos. Vai ser agora responsável por propor medidas em relação às minorias e, antes mesmo de assumir seu lugar, anuncia que irá acabar com os privilégios conquistados pelos homossexuais nos últimos anos. (PRIVILÉGIOS???!!!) E o que pra muita gente é uma notícia corriqueira no facebook, me pega em cheio, me tira a fome, me joga na cama e remexe meu estômago e intestino. E aqui já nem me cabem mais as palavras para expor a esse cidadão e aos que compartilham de sua opinião, que homossexuais não tem quaisquer privilégio em nossa sociedade, pois nos faltam os direitos civis básicos. Ou, para falar a língua que os senhores preferem, nos falta o direito primeiro, primordial, nos falta o direito divino à vida. O seu preconceito e a sua intolerância mata mais do que o exército de Israel. O Brasil, que já não é mais o primeiro do mundo no futebol faz tempo, também faz tempo que não sai do primeiro lugar do mundo em extermínio de homossexuais. Extermínio sim. Porque são assassinatos direcionados. São tocais armadas, ciladas planejadas. Vocês, senhoras e senhores evangélicos intolerantes, estão exterminando seus filhos, sobrinhos, netos. Vocês, senhoras e senhores evangélicos intolerantes, estão incentivando o extermínio de meninos e meninas adolescentes, muitos antes mesmo de chegarem aos vinte anos. Não é bullyng, não é piadinha, não é hipocrisia, é ASSASSINATO. Essas pessoas tem pai, mãe, irmãos, filhos, sobrinhos. Essas pessoas nascem de vocês e o que elas carregam não é uma falha de caráter, não é uma má formação genética, é o seu sangue, é amar e esperar que em um país dito democrático, existam leis que assegurem a elas o direito de viver. Não precisamos esperar um outro holocausto ou a explosão de uma bomba atômica para que as narrativas não deem conta da nossa experiência. Ela já não dá. A minha narrativa não dá conta dos meus colegas mortos e violentados por serem quem eles são. A minha narrativa não dá conta do meu medo de ser a próxima vítima.

Camila Damasceno
Campinas, 01/03/13

Um comentário:

Anônimo disse...

Isso parece um manifesto. Mas... Embruteci. Sorry!