sábado, 7 de agosto de 2010

Petrópolis, 04 de agosto de 2010

Oi Flor.
Isso não era para ser uma carta, mas sei que só um bilhete não vai dizer o que eu quero te dizer. Por aqui as coisas vão indo, se alternando em dias de euforia e do contrario dela, um sentimento que beira o desespero. Quase não me reconheço na maior parte do tempo. Ando trabalhando demais e sendo eu de menos. Entrei para a Capoeira, adotei um gato, vou ganhar uma bicicleta. Talvez as coisas melhorem. Meu pequeno passou uns dias comigo, a mulher que eu amo tem passado os últimos e não sei como vou ficar quando todos se forem. Tenho tentado trabalhar menos, para que algo me recompense diariamente. Pendurei um calendário na parede e conto os dias que faltam para a semana acabar. As vezes me sinto como um dependente químico em processo de recuperação: conto as horas para agüentar, só mais um pouquinho, para viver mais um pouquinho, para mentir mais um pouquinho. Mas sabe, Flor, eu não minto o tempo todo. Não consigo. Não consigo viver 24horas o personagem que me empurraram goela abaixo. Por isso a Capoeira, o gato, a viagem para Trindade. Por isso escrever cartas, ler livros, te preparar caixas surpresa. Para misturar cada pedacinho com os pequenos detalhes cotidianos. Regar as flores, fazer compras, lavar roupa, cozinhar, manter a casa limpa, o armário arrumado, o potinho de comida do gato cheio, tirar o lixo, lavar a louça, o banheiro, a cozinha. Mas eu não minto o tempo todo, não consigo. E tem dias, Flor, que dá vontade de me rasgar de dentro pra fora. Vontade de gritar com a vizinha que não pára de brigar com o namorado, de xingar aquele mala que acha que é meu chefe e não é, de mal dizer todos os petropolitanos por não ter feito amigos aqui em mais de seis meses. Dá vontade de deitar na minha cama e deixar o tempo passar até o ano acabar. Mas aí, Flor, quando a fase do desespero começa a passar, quando aos pouquinhos eu começo a me refazer em forças para criar novos sonhos, novos planos, quando consigo me encontrar em pequenas coisas e desejar tudo que me dê possibilidade de ser mais eu, menos esse personagem que vai trabalhar de segunda a sexta; quando vai ficando cada vez mais claro que grande parte do meu peso vem da atividade que eu tenho exercido, eles me compram com bonificações, jantares, dinheiro referente a siglas que eu nem sei o que querem dizer. Remunerações variáveis de coisas que eu não gostaria de ter feito. E eu me sinto vendida. E chego em casa carregando um mundo nas costas. E deito no chão da sala e olho ao redor, vendo tudo que comprei com esse dinheiro, vendo o apartamento onde eu moro e pago com esse dinheiro. E penso na escola do meu filho, no presente para minha mãe, naquele fim de semana, nas idas ao cinema, nos armários cheios de comida, roupas e livros. E as vezes acho caro, muito caro ter certas coisas. Qual o preço da minha tranqüilidade, Flor? No silêncio do meu apartamento vazio, fica o barulho do dia inteiro, ressoando dentro de mim. As vozes, as frases, os tons ríspidos da fala, os olhares, as piadinhas e os sapos, os imensos sapos de cada dia. Quando a vontade de escrever se dispersa nas angústias que não se deixam expressar. No barulho interior. Eu queria te dar noticias, Flor. Contar do fim de semana em Trindade, das idas a Juiz de Fora, das conversas com meu pequeno, do amor que a mulher que eu amo tem me dedicado, te contar das travessuras do Jimmy (o gato) e te fazer perguntas sobre a vida por aí. Mas é preciso diminuir os ruídos. Eu já tenho a varanda, a rede, o notebook no colo e o copo de mate na mão, mas cadê o silêncio?

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