Sentiu de novo aquele cheiro. O
vento frio cortando o rosto. A luz invadia os olhos e cegavam. Ela enxergava
melhor na penumbra. Ou era assim que costumava ser. Como naqueles dias em que
recebia a luminosidade aos poucos. E aos poucos observava a luz clareando os
ambientes. O dia nasce devagar. A luz e a escuridão passam horas em
contato. E enquanto uma recua exausta, a outra espalha-se na imensidão. Como
naqueles dias. Dias em que ela apurava o olhar. Dias em que uma garota, com
cara de mais garota ainda, invadia os redutos masculinos na escuridão,
iluminada por placas de neon, e se sentava a mesa com eles. Como um deles. A
fragilidade exposta nos olhos e a segurança mascarada nos ombros. Nos dias em
que ela habitava o mundo dos mortos. “O inferno é isso aqui”, bradou uma vez,
irritada com um papo chato de crente em mesa de botequim. Ali era sempre o
último bar aberto no que restava da madrugada, que podia acabar ao meio dia,
comendo pastel, tomando cerveja e conversando com as prostitutas na feira no
centro da cidade.
Ela sentiu de novo aquele cheiro.
O vento frio cortando o rosto. E as caras amassadas de dormir, misturadas às
aparências cansadas de quem acorda quando ainda é noite, já circulavam pelas
calçadas. Não longe dali, uma criança dormia um sono profundo, envolta em
ursinhos de pelúcia. Aquele cheiro e aqueles sons. O mundo dos homens sendo
desbravado pelo rosto juvenil de menina. O peito estufado. A segurança nos
ombros. Bebia uma cerveja encostada no balcão. Falava qualquer coisa com o
garçom. Ria. Ouvia. Cheirava. Qualquer coisa dessas que a gente vê na noite
todos os dias. Qualquer coisa sobre bêbados brigando na calçada, crianças
cheirando cola e pedindo esmolas, transações sexuais discutidas em mesa de bar.
Qualquer coisa sobre o sentido da vida ou as teorias sobre vida após a morte e
a existência de demônios rondando por aí. “Os demônios são pessoas como essas,
que não percebem que morreram e continuam sugando os outros em busca de álcool,
drogas e sexo” - arrematava em tom de ironia com os parceiros mais frequentes.
E eles eram sempre os funcionários do bar. Do gerente ao segurança.
Ela sentiu de novo aquele cheiro
quando, naquele dia, ele a puxou com força pra dentro e a mandou ficar ali. Os
movimentos anteriores foram uma gargalhada forçada de uma travesti, um
nordestino comprando mais uma ficha para cantar sertanejo no karaokê, alguém
discutindo a conta no balcão e um motoqueiro com o capacete levantado,
arrancando com a moto por cima da calçada. Quando acreditou que ela estivesse
segura, ele se voltou novamente para fora do bar e ela pode ver a arma presa à
cintura. “Ele foi gogoboy. Dançava na boate de vez em quando” – e ela sabia que
era verdade. Tanto quanto sabia que aquele barulho não era de cano de descarga.
Estufou o peito. Ele voltou e a mandou ir embora. A madrugada acabou mais cedo
aquele dia. E pra ela não tinha durado nem duas horas.