terça-feira, 25 de outubro de 2011

Nascer

"Dadinha, sentada num tamborete com as pernas escarrapachadas e sacudindo o corpo de riso, disse que deviam ter dado miolo de boto a ele para ter ficado maluco assim, já velho e ainda sem nenhum juízo. Mas ele não ligou, deu dois saltos e caiu com um joelho no chão diante da menina, que estava quieta e enrolada em cima de uma esteira.
- Naê-ê! - gritou. - Rainhazinha de Aiocá! E o sinal!
- E dizendo bobagem - reclamou Dadinha.
Mas ele de novo não ligou e, como se houvesse muito mais música ali do que o som de seus calcanhares batendo no chão, das palmas que repenicavam em mil compassos e do que lhe saía da boca em estalidos de língua e beiços e melodias de garganta assemelhadas a solos graves de flauta, esticou os músculos, agora retinindo de tensão e suor, e dançou. Muitos ali dançavam e eram admirados quando, nas festas em que podiam fazer música, reviravam os olhos e saltavam loucamente pelo barro batido, flutuavam no ar, faziam com que seus corpos fossem muitas coisas ao mesmo tempo, traziam fogo aos corações dos outros e, nessas horas, eram divindades. Mas nunca se viu tal dança como a de Turíbio Cafubá celebrando sua filha, pois ele ficou transparente e logo muito preto e logo estava em toda parte, às vezes parando e vibrando como uma asa de cigarra, às vezes se dissolvendo em tantas formas que as pessoas não sabiam em que acreditar, e então todos os ritmos que brotavam em sua figura eram ritmos de alguma coisa acontecendo dentro de cada um, sangue pulsando, dedo se abrindo, fôlegos tomados, tudo o que pode ocorrer no corpo, tudo ao que o espírito se entrega. (...) dançou em homenagem à filha como os guerreiros mais orgulhosos de que se tinha notícia, esse orgulho espelhado em todo gesto, toda martelada de pé, todo olhar levantado, todo ombro erguido, todo passo à frente, todo agitar de braços e mãos, tudo com que se pode exibir altivez." 

João Ubaldo Ribeiro - Viva o Povo Brasileiro

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Ele mais uma vez

- Mãe, quero te perguntar uma coisa.
- Fala.
- Espera.
- Pode falar, Arthur.
- Tá bom.
- Fala.
- Lembra aquela conversa sobre legalização da maconha?
- Uhum.
- O quê você me respondeu quando eu perguntei se você é a favor?
- Eu disse que era. Dependendo de como isso vá ser feito. Mas a gente conversou sobre dar dinheiro pra traficante, essas coisas, lembra?
- Uhum.
- ...
- Mas mãe, se fosse liberado, você usaria?


E eu rezei pra alguém pisar numa casca de banana, ali, no meio da Sé, e caír na nossa frente. Porque alguma coisa tinha que me tirar dessa situação.

Papo de surdo e mudo (é sempre mais do mesmo)

Lembra o questionamento sobre ser aventureira? Então, consegui responder. Hoje. De verdade. É, demorou três meses, mas tá ótimo. Tem coisas que eu carrego há anos e ainda não consegui responder. Pois então. Descobri. Mas não é aventureiro mesmo. Como eu já desconfiava, porque esse termo me incomodou muito no dia. Incomodou sim. Vocês fazem de propósito. Eu sei. E na hora até me saí bem. Passei no teste. Claro que passei. Tô aqui, não tô? Então... é assim... Eu gosto do que me incomoda. Essa é a resposta. Me agrada o que me faz pensar. Eu só crio quando eu penso. Eu só sou quando eu penso, entende? O que faz diferença, o que não deixa que ninguém seja igual e toda essa balela de ser único no mundo é o que você pensa. É único porque ninguém mais pensa exatamente igual a você em relação a tudo. Sei lá. Tem coisa que se pensa e que pode muito bem não se encontrar mais ninguém que perdeu tempo com aquilo. Dá pra entender? Porque isso explica tudo. Essa é a resposta pro "aventureiro?". Não é aventura, é movimento. Enquanto me movimenta, me faz pensar, me adiciona, eu vou. E se parar, se eu me sinto sem sair do lugar, eu literalmente saio. Talvez por isso tantos lugares, tantas pessoas, tantas coisinhas.  Talvez por isso aquele papo da eterna busca por sossego. O sossego de mim. É o que eu não espero encontrar aqui. E por isso também, que aqui não é pra sempre. É um estímulo, um pedaço do caminho, que eu acho importante passar. Adiciona. Adiciona muito. E aí, eu chego aqui, e tá rolando, tá sendo legal, mas algumas coisas ainda não cabem. E fica inevitável uma certa frustração mesmo. Porque não adianta querer falar. Você sabe disso. E foi quando eu consegui ver assim, que entendi o que ela quis dizer. O que ela disse. E eu lá, discutindo. Idiota. O que ela disse foi isso: "Olha, não adianta você querer falar disso sozinha". Teatro não é um só. Enquanto os outros não comprarem o que você está querendo dizer, não vai. Não sai do papel. É o tal do pacto. E aí, eu acordei no meio da noite e isso ficou na minha cabeça. Martelando, sufocando. Até eu levantar e vir aqui te dizer essas coisas. Porque eu sempre soube que não se faz sozinho. Nem eu sem eles, nem eles sem mim. "É um exercício de escuta constante". Acho que foi o Zé que disse isso. E daí eu comprei cotonetes. Eu limpei os ouvidos. Eu abri tudo pra deixar entrar as idéias, os questionamentos deles todos. Bebi tudo isso durante semanas e trouxe de volta o que me tocou. Só que eles estão surdos.   

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ela

Mas que hora é essa? Quando a gente sabe que chegou? Ela chega? Alguma hora? Chega? A que horas? Eu não sei onde ela está, como ela está, quando ela está, onde ela se esconde. Eu não sei. Eu acredito nisso. Eu sempre acreditei. E eu sei que ela chega, uma hora. Essa hora em que um presságio, uma alucinação, um sei lá o que acontece. Vem como quem não quer nada, aparece de uma coisa boçal, dessas que você está acostumado a esbarra todos os dias. Ela não é genial. Ninguém acha genial, não assim, não de início e é ela. É ela que chega desse jeito aí que a gente não sabe bem como é. Eu não sei bem como é. Ela chega. Esse não sei o que que chega não sei de onde. E ela muda. Muda tudo. Muda a vida. Dá um outro sentido. Cadê? Eu preciso que ela chegue, você entende? Porque essa ansiedade de esperar ela chegar e me atentar a qualquer coisinhas que possa ser um sinal, um sinal de que ela está se aproximando, essa ideia fixa de estar sempre atento porque ela pode aparecer a qualquer momento, isso me mata. Me mata aos poucos. Me mata mais ainda porque eu sei que ela só chega se eu me distrair. Se eu não vir que ela está chegando. Mas aí, eu fico assim, nessa ansiedade, nesse movimento de vulcão prestes a explodir de felicidade quando perceber que ela está bem aqui, chegando, dentro, fundo, alcançando aquele lugar onde ela deve ficar para dar certo. E eu espero. Eu espero esse dia, esse momento, esse homem mascando chicletes. Eu espero isso há tanto tempo... Desde que eu me lembro que eu penso, eu espero. Espero. Sabendo que tenho que esperar distraído, sabendo que tenho que estar olhando para o outro lado, para que ela não se sinta acuada, para que ela fique a vontade para se aproximar. Ela vem, eu imagino ela vindo. Num sopro, leve, na brisa, na beira do mar ou no meio do mar de gente na fila do metrô na Sé, às seis horas da tarde. Eu sei que ela vem. Eu sei, eu tenho certeza, que um dia ela vai chegar e mudar tudo. E mudar a minha vida. Eu sei disso, como uma certeza infantil. Eu me lembro de esperar por ela desde a infância. Ela, ela chega, um dia, um dia ela chega. Mas é isso que me mata. Saber, com essa certeza toda que ela vai chegar e que eu não consigo me acalmar para esperar, para estar distraído o suficiente para que ela se sinta a vontade. Então, é como se eu soubesse que ela está ali, na próxima esquina, esperando ouvir o meu assobio, para me tomar de mim. Mas é aí, nesse ponto, saber que ela está logo ali, na próxima esquina, me esperando, que me deixa tão ansioso que me faz ficar atento. E ela vai embora. Espera um outro momento. E eu faço charme e finjo que não estava nem aí, nem te vi, nem tô esperando você, nem nada, nem ninguém. Mas não adianta. Ela sente meu cheiro de animal angustiado, ansioso, a adrenalina correndo no meu sangue. Ela ouve de longe o pulsar das minhas veias. E vai. Para onde? Para onde você foi ideia genial?!